::.Amigos & Seguidores.::

sábado, 4 de junho de 2011

:.. Hilda Hilst por Gisele de Marie



Este artigo que segue é de autoria de Gisele de Marie, uma grande amiga, com talento na escrita. Já é o segundo texto que ela gentilmente cede para mim, e tenho certeza que será muito esclarecedor àqueles que procuram saber mais sobre a senhora Hillst. Agora é só mergulhar na leitura...

HILDA HILST: UMA SENHORA DERRELIÇÃO

Eu tinha 24 aninhos, ela 64. Eu era apenas uma recém-formada, idealista, amante dos direitos humanos, das causas das mulheres, dos negros, das crianças, dos homossexuais, de todos/as os/as injustiçados/as e oprimidos/as do planeta. Amante, também, das buscas espirituais e das artes, especialmente literatura, teatro, cinema. Já então, mesmo sendo uma ilustre desconhecida, aventurava-me em escrever, em dizer o que penso e sinto, embora mais de uma vez tal hábito tenha me custado não poucas bordoadas. Ela ? Bem... ela já era uma senhora escritora, premiadíssima, cultíssima, de um talento e criatividade ímpares na literatura brasileira e internacional. Ainda assim, por inacreditável injustiça, bem pouco conhecida em nosso país e no mundo. Ah, e de quebra, muito – mas muito mesmo – mais especialista em bordoadas do que eu. Seu nome ? Hilda Hilst.

Contudo, vamos por partes. Como acabei de dizer, eu tinha apenas 24 anos e, a exemplo da maioria, não sabia da existência dessa excepcional criatura. Até que, num dia de 1994, chegou às minhas mãos uma entrevista dela a um crítico literário, publicada, se não me falha a memória, no jornal “O Estado de São Paulo”. A primeira coisa que vi foi uma grande fotografia de uma mulher de uns sessenta anos, traços europeus, vestida com calças compridas escuras e camisa de gola aberta com mangas dobradas na altura dos cotovelos. Estava sentada numa poltrona, olhando de frente, com um ar majestoso, sério, determinado, um tanto desafiador e, sem dúvida, incrivelmente inteligente. Havia também outras fotos, porém, essa foi a que mais me impressionou, talvez porque seus olhos pareciam fixar diretamente os meus. Claro que não precisei de mais nada para querer saber, o quanto antes, de quem se tratava.

Li a entrevista de fio a pavio. Descobri que Hilda de Almeida Prado Hilst, mais conhecida pelo primeiro e último nomes, era uma paulista nascida em 21 de abril de 1930, em Jaú, que então morava em Campinas, e que se tornara uma das mais originais e ousadas escritoras em atividade no Brasil, cruelmente condenada a um amargo desterro em seu próprio país e em sua própria língua.


Hilst, como ela mesma disse ao entrevistador, já escrevia há 30 anos, tendo inúmeros livros em prosa, versos e dramaturgia publicados. Colocara neles suas maiores riquezas, entregando o que tinha de melhor, no entanto ninguém queria saber, jogavam fora o que oferecia à literatura de língua portuguesa e universal. Acumulara prêmios literários, bem como críticas favoráveis ao seu trabalho; pertencia à equipe dos artistas residentes da Unicamp, sendo que a mesma estava interessada na compra de seus arquivos; entretanto, de que isso lhe adiantava se quase ninguém a lia ? Seu editor no Brasil editava seus livros, mas não os distribuía. Hilda chegou a formular uma teoria de que ele os escondia debaixo da cama, já que nunca encontrava suas obras nas livrarias – só em alguns sebos, ao lado dos autores mortos... Nem sequer conseguia receber alguma coisa de direitos autorais. Sobrevivia do programa da Unicamp, onde era chamada para simpósios e palestras, nos quais nunca sabia ao certo se conseguia agradar. Um dia perguntou a um professor: “Por que nos debates ninguém se dirige a mim ?” Resposta: “Ora, porque os alunos têm medo de você” Então, certa vez ela resolveu dizer: “Não se preocupem, eu é que tenho medo de vocês”. Não adiantou. Continuou falando sozinha, terminando por concluir que seria uma boa idéia se conseguisse ter várias máscaras para vestir, durante conferências e outras situações, de acordo com as necessidades do momento. Inclusive queria ter uma de “brava” para quando a agredissem.


O que ficou muito claro para mim, na tão interessante entrevista, é que essa tal de Hilda Hilst tinha grande dificuldade em usar qualquer máscara, e é provável que isso incomodasse a muitos. Certo, mas a ponto de deixarem sua literatura às traças ? Não, alguma coisa não se encaixava... Por que os alunos tinham medo de debater ou de fazer perguntas a alguém que se mostrava tão vulnerável a ponto de não saber fazer “cara de brava” ?


Munida destas questões, tratei de ir atrás de seus livros. Hilda tinha razão: devia haver alguma conspiração contra eles. Acontece que, após percorrer todas as livrarias e sebos de minha cidade, só encontrei um: “Contos D’Escárnio”, justamente um dos livros que fazia parte da tetralogia “pornográfica” (e que chamo de “pornoamarga”) que ela resolvera lançar no início dos anos 90, como resposta revoltada e amargurada, a leitores, editores e críticos que durante tanto tempo a ignoraram, ou a colocaram debaixo do tapete, ou deram valor e recompensas, bem como condições dignas de vida, a um bando de escritores medíocres, relegando um verdadeiro talento como o dela ao ostracismo. Ora, já que era assim, quem sabe se escrevesse uns quatro livros pornôs, bem ao gosto dos medíocres, quem sabe assim conseguiria alguns tostões? Afinal, quem escreve também precisa viver e pagar as contas. Quem sabe assim o público descobriria que ela existia e passasse a se interessar por outras obras suas? Foi o que imaginou. Só que também não deu muito certo. Primeiro porque isso não aumentou a venda de seus livros. Sim, um deles até chegou a parar na França e outro na Itália, recebendo boas críticas. Só que não foi além disso e da Itália, para seu espanto, não chegou a receber um centavo dos direitos autorais. Segundo porque, mesmo escrevendo pornografia, Hilda não conseguiu esconder sua genialidade, erudição, profundidade, sarcasmo e provocação. Seus personagens, ainda quando fazem sexo, pensam o tempo todo. E esse verbo, como se sabe, é perigoso... Pensam nas questões da existência, na morte, dor, solidão... Na realidade, a tal “pornografia“ e o sarcasmo escrachado não passam de fachada para o que realmente ela deseja dizer nas entrelinhas de uma intensa trama intertextual, que a maioria dos leitores comuns é incapaz de compreender.


De modo que, há uma contradição um tanto aflita na Sra Hilst. Explico. Mas antes contemos um pouco de sua história. Ela nunca quis saber de convenções, badalações literárias, hipocrisias. Quando jovem cursou direito na São Francisco e depois desistiu da carreira por completa incompatibilidade com a mesma. Morou sozinha em São Paulo, onde freqüentou os meios artísticos e culturais, fez muitos amigos e, não raro, escandalizou a alta sociedade, com seu comportamento considerado “avançado” para a época. Fez várias viagens, teve vários amores, despertou grandes e inúmeras paixões. Conheceu até o ator Marlon Brando na Europa, quando então se viu frustrada ao tentar assediá-lo, descobrindo ser ele homossexual. Sem falar que já nesse tempo escreve. Escreve poesia de inequívoca qualidade e coleciona prêmios. Enfim, viveu a vida que quis, livremente. Certa ocasião, porém, aos 33 anos, após ler “Carta a El Greco” do escritor grego, Nikos Kazantzakis, e ficar impressionada com a tese desse autor - de que é preciso isolar-se do mundo e da algazarra humana para tornar possível um conhecimento mais profundo de si mesmo, do ser humano, e para escrever, para descobrir o que se tem a dizer – Hilda decide se despedir radicalmente da vida que levava, que a seu ver a estava distanciando de seu verdadeiro trabalho: escrever. Continua livre como sempre. Só que agora decide, no ano de 1963, passar a viver numa fazenda a 11km de Campinas (propriedade de sua mãe), onde abdica da vida de intenso convívio social para se dedicar integralmente à literatura. Três anos depois, muda-se para a Casa do Sol, um casarão semelhante a um mosteiro cheio de lindas árvores e natureza, que ela construíra nas terras de sua mãe, onde já residia. Ali passará o resto de sua vida, continuará seu programa de literatura integral e redigirá 80% de sua obra.


Nesse mesmo ano conhece o escultor Dante Casarini, por quem se apaixona. Convida-o para viver com ela em sua “torre de capim”. Ele aceita. Não demora muito e se casam em 1968, vindo a se divorciar em 1985, nunca deixando de ser amigos. O casamento se deu por imposição da mãe de Hilda, que então acabara de ser internada no mesmo sanatório em que o pai fora internado anos antes. O pai da escritora foi uma figura muito importante em sua vida. De família tradicional de Jaú, também dado à poesia e à escrita, aparentemente com grande potencial, ainda muito jovem foi absorvido e destruído pela esquizofrenia. Hilda teve pouquíssimo contato com ele, mas sua figura, sua inteligência, seus textos e sua tragédia a marcaram fortemente. Ela chegou a afirmar, mais de uma vez, que se tornara escritora por causa do pai. Já que a loucura o impedira de ir adiante com sua vocação, ela, sua filha, criaria uma grande obra, da qual ele pudesse se orgulhar.


O medo da loucura e da morte foram, aliás, os maiores fantasmas de Hilda Hilst durante sua vida. Os médicos diziam que ela poderia herdar a doença. Após a internação também de sua mãe, chegaram a apostar qual seria aquele que trataria da escritora no futuro. Pobres médicos... deram com os “burros n’água”. A doença de Hilda nunca fora a loucura, mas a lucidez e sensibilidade extremadas. É bem possível que seu pai se orgulhasse de sua literatura, caso tivesse tido contato com ela, todavia, tenho dúvidas de que mesmo ele conseguisse atingir a profundidade da obra da filha e compreender todos os seus meandros, enigmas e significados. Como dizia Mário Quintana: “Autor que deseje conservar seus leitores não deve ministrar-lhes o mínimo susto. Apenas as eternas frases feitas”. Hilda Hilst nunca seguiu este conselho. E aqui voltamos ao assunto de sua contradição. Uma de suas maiores contradições está justamente no fato de que sempre desejou se comunicar, se aproximar dos leitores e leitoras (ainda quando, decepcionada, dizia o contrário) e ao mesmo tempo nunca fez concessões ao fácil, ao lugar comum. Sua vasta escrita é intensa, densa, complexa, vital, sarcástica, perturbadora. Sua linguagem é riquíssima, permeada por uma erudição literária, filosófica, teológica, mística e científica, que poucos conseguem acompanhar e, por outro lado, é nua e crua, propositalmente chocante para alguns leitores/as, sempre desnudando, quebrando as máscaras e muros que costumamos construir para nos manter afastados/as das questões essenciais, como a morte, a existência, a velhice, o alienamento, a fuga, o transcendente, o escatológico, Deus. Temas em que Hilda faz questão não apenas de mexer, mas de mergulhar o tempo todo. Seus personagens frequentemente estão pensando e dialogando em cenas surreais que transitam entre a metafísica e o cotidiano mais elementar. Todos eles têm uma fome e uma busca central, primordial, urgente, que os atormenta sem trégua. A mesma fome de sua autora: DEUS. A busca incansável de Deus é a tônica de praticamente toda a obra de Hilda Hilst e, creio, de sua vida também. Parece estranho, no entento, este tem sido, nesses nossos tempos contemporâneos um tabu. Por isso mesmo, ou é tratado superficialmente, esteriotipadamente, ignorantemente, fundamentalistamente, ou não é tratado. Faz tempo que a maior parte dos seres humanos (mesmo os que dizem acreditar em algum Deus), vivem como se ele não existisse ou o/a tratam, bem como à morte, de maneiras simplistas. Hilst nunca se contentou com isso, ela tenta ir ao cerne do que preferimos deixar de lado. Talvez por esse motivo muitas vezes assuste. Ou talvez pelo modo como coloca essas questões. De qualquer forma, nunca conseguiu fugir delas. Espero que hoje, onde quer que esteja, tenha finalmente encontrado o que tanto desejava, tenha podido saciar sua fome enorme e tão desconcertante para tantos que continuam a não entender...


Ela faleceu em Campinas-SP, no dia 4 de fevereiro de 2004, às 4h da manhã, após ter sido internada no Hospital das Clínicas da Unicamp no dia 1 de janeiro, devido a uma queda e conseqüente fratura de fêmur, que veio a se complicar gerando uma infecção generalizada. Foi sepultada na tarde do mesmo dia de sua morte, no Cemitério das Aléias, em Campinas. Certa vez dissera que gostaria de morrer segurando a mão de sua grande amiga Lygia Fagundes Telles. Afirmação interessante porque, talvez devido à idealização que fazia do pai, ela sempre dera a impressão, em suas entrevistas, de que valorizava mais os homens do que as mulheres. No entanto, a pessoa com quem falava ao telefone todos os dias e com quem desejava estar ao morrer, era uma amiga e uma mulher. Mais uma de suas contradições...


Depois de sua morte, todos os seus livros foram relançados pela editora Globo. Sua casa em Campinas foi transformada no Instituto Hilda Hilst – Centro de Estudos Casa do Sol, idealizado e dirigido pelo escritor José Mora Fuentes, seu amigo e herdeiro. Informações mais detalhadas sobre o Instituto, a escritora e seus livros, podem ser encontradas em seu site oficial: http://www.hildahilst.com.br/ Se você nunca leu nada dela, convido-o/a a começar por suas obras de poesia e outra dica é o livro “A obscena senhora D”, que apesar do título não faz parte da tetralogia pornográfica e fala muito de sua autora. Este, de todos os seus livros, foi o mais tocante para mim.


Nos anos 90 cheguei a escrever cartas para Hilda e, como muitos que foram até ela em sua Casa do Sol, sempre bem recebidos, eu deveria ter ido também. A timidez, entretanto, me impediu. Fico imaginando o que ela teria achado disso. Torço pra que eu possa reparar esse erro algum dia...


Resumindo, caro leitor ou leitora, existe uma escritora brasileira, ímpar em nossa literatura, que até hoje a maioria não conhece. Chama-se Hilda Hilst. Muitos diziam e ainda dizem que ela era uma espécie de louca destemperada. Outros que ela era um gênio. Penso que seria bom se nos dispuséssemos a julgar por nós mesmos e, na minha humilde opinião, Hilda era simplesmente, a exemplo de sua “Obscena Senhora D” (que não tem nada de obscena), apenas também uma senhora “D” como eu e você. “D” de “Derrelição”. Lição que derrete o coração...


“Que te devolvam a alma
Homem do nosso tempo.
Pede isso a Deus
Ou às coisas que acreditas
À terra, às águas, à noite
Desmedida,
Uiva se quiseres,
Ao teu próprio ventre
Se é ele quem comanda
A tua vida, não importa,
Pede à mulher
Àquela que foi noiva
À que se fez amiga,
Abre a tua boca, ulula
Pede à chuva
Ruge
Como se tivesses no peito
Uma enorme ferida
Escancara a tua boca
Regouga: A ALMA.
A ALMA DE VOLTA”
(Poemas aos homens de nosso tempo, de Hilda Hilst)

Quem quiser conhecer o outro artigo de Gisele de Marie - "Quem foi Pagu", clique aqui: http://rascunhosdeandreavaz.blogspot.com/2009/03/quem-foi-pagu-pelo-olhar-de-gisele-de.html

0 comentários:

Related Posts with Thumbnails

:: Frases para Refletir ::

"Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já tem a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos." (Fernando Pessoa)